5 de fevereiro de 2012

Entre o Espada e a parede


Há uns meses atrás, logo após a manifestação da geração à rasca, Pedro Lomba exortava os jovens descontentes a não serem "parvos e inocentes" - "Se estão insatisfeitos com o leque de escolhas que periodicamente nos são oferecidas filiem-se nos partidos. Militem (...) nos partidos manda quem lá está ". O elogio da militância de Lomba não era, todavia, nada inocente uma vez que acrescentava - "Estou a pensar sobretudo no PSD e CDS, partidos que mais naturalmente assumirão o discurso de ruptura e de abertura que me parece necessário para ultrapassar este impasse". O impasse, na verdade, chamava-se José Sócrates e a Lomba interessava corrigir o rumo de uma indignação que ameaçava ferir a ascensão da direita que o pariu. Urnas fechadas, votos contados, assunto arrumado.

Não deixa, no entanto, de ser interessante observar que a recusa do ataque aberto e rasteiro aos movimentos de indignados e Occupy, tão empandeirado por Helena Matos ou José Manuel Fernandes, é próprio duma direita a quem, mais do que malhar, interessa educar a indignação, abraçar o descontentamento e conduzi-lo a bom porto. Um exemplar acabado desta estirpe é João Carlos Espada, a quem não faltam créditos de pedagogo. Espada escreveu um artigo no público desta semana intitulado "Dialogando com o movimento Occupy London", e como dialogar é ouvir e ser ouvido este não vacilou em elogiar o artigo que o movimento londrino publicou recentemente no Financial Times, a começar pelo seu curioso título: "Como Hayek ajudou-nos a encontrar as falhas do capitalismo".

A curta referência a Hayek (a partir da sua tese sobre a potencialização de múltiplas inteligências) por parte do movimento Occupy é apenas uma provocação e uma isca de leitura para liberais que, como Espada, não a rejeitaram. O centro do artigo passa sim por afirmar o princípio simples da troca de ideias e da discussão democrática antes do avanço de propostas políticas, sendo que dentro da diversidade assumida o movimento aponta uma plataforma comum de acção - recusar a austeridade e impor uma verdadeira regulação do sistema financeiro. A essa base o movimento acrescenta ainda três propostas concretas para o cenário britânico: atacar a evasão de fiscal e os paraísos fiscais, parar a especulação imobiliária e promover o acesso à habitação, combater a desigualdade de rendimentos através do nivelamento dos salários dos executivos e trabalhadores das empresas.

Propostas inviáveis dirão uns, recuadas dirão outros. Muito bem, mas até Espada concorda que todas partem de um denominador comum: a desigualdade do sistema, a desigualdade entre as pessoas, a desigualdade entre grupos e classes. O que a uns falta é o que a outros transborda, de um lado os 1% do outro os 99%. E isso é algo que Espada não pode aceitar. Como o próprio diz "o que ele [o capitalismo] precisa é de mais liberdade e oportunidade para todos, não de mais igualdade", mas essa liberdade engendra um fruto natural, que todos temos de aceitar e que se chama "desigualdade". Por isso este liberal se mostra indignado com o salvamento dos bancos pelo dinheiro dos contribuintes, estes "deveriam falir" como qualquer outra instituição numa sociedade livre com regras iguais para todos.

Seriam estes apenas os desabafos de um liberal apoquentado com o rumo dos acontecimentos não fosse o facto de esta ser, precisamente, a primeira mensagem de "diálogo" que Espada dirige aos Occupy - aos bancos cabe, se for caso disso, falir e dar lugar a outros que triunfem na liberdade da sociedade e do mercado, e não ser criticados pelas suas práticas ou substituídos através da socialização dos seus recursos. Toda a indignação contra o salvamento dos bancos mas nenhuma que belisque os princípios da sua actuação ou os alicerces da sua exploração. Deixemos portanto os gestores e banqueiros em paz, se falirem outros se seguirão e é assim que tem de ser. A desigualdade não é para aqui chamada.

De onde partir então para pensar os problemas actuais? Espada esclarece, "o verdadeiro problema é o da pobreza", em face da qual o que todos deveríamos discutir é o seu "alívio", e nunca a sua eliminação pela "promoção da igualdade". Mas uma sociedade que queira aliviar e atenuar essa pobreza enfrenta interesses poderosíssimos, aqueles que insistem em destinar "uma imensa despesa pública" aos monopólios estatais da saúde e educação "que, ao fornecer serviços quase gratuitos universais, na verdade estão a subsidiar os mais ricos com o dinheiro dos mais pobres e a proteger os produtores do Estado da saudável concorrência geral". Eis a segunda fala de Espada - o que nos separa da sociedade livre é o Estado, que rouba aos pobres para dar aos ricos. A escolha torna-se, então, muito clara: destruir essa divisória estatal e permitir aos que são livremente pobres e livremente ricos tomar a via frondosa das oportunidades. De um só golpe Espada brinda-nos com duas soluções: aceitar a austeridade, que tirará do caminho o empecilho estatal, e defender a libertação do jogo de liberdade entre pobres e ricos, em suma, o esfumar da oposição em que radica toda a desigualdade.

É claro que a Espada e aos que ele representa, desde o Governo, Merkozy e os donos dos mercados, o que interessa realmente é continuar o monólogo da austeridade cega e do abuso quotidiano sobre a vida dos milhões que todos os dias experimentam a "liberdade" do desemprego, da precariedade e do desespero. Querem-nos a empobrecer calados ou, quando muito, adestrados numa indignação que não abale a balança das relações de exploração nem imponha a partilha e a igualdade como solução dos problemas de muitos mesmo que dolorosa para uns quantos. Não lhe façamos esse favor, juntamente com os Occupy, indignados, trabalhadores, movimentos, sindicatos e tantos outros dos 99%, responder-lhes é preciso.

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