4 de julho de 2011

Classe Média

Já vem com algum atraso mas não podia deixar de partilhar uma magistral resposta ao inacreditável artigo de José António Saraiva no Sol.

CLASSE MÉDIA

Camarada Van Zeller, apesar dos meus 485€ de base, estou numa de classe média à la Saraiva. Esta opção acarreta uma clara intenção filantrópica. Quero ajudar a pagar a factura da crise. A minha postura, neste momento, é a do guerreiro samurai contra ventos e tempestades. Sangue, suor e lágrimas, caro Van Zeller. É isso que sinto nos meus concidadãos, e é esse sentimento que pretendo trazer ao meu coração. Se for para pagar a factura da crise, até um patrão gordo e ignóbil eu aguento. Que remédio! Aceite-me ele a mim, explorado ou não. O que importa é ajudar o país, pois mais importante que a felicidade dos indivíduos é a alegria da nação. Não só deixarei de viajar em executiva como deixarei de viajar "tout court", que é uma forma de viajar muito mais económica e igualmente espiritual. Tal como o bom mestre Saraiva, também eu julgo que os patrões de hoje «são quase sempre pessoas que subiram a pulso, que trabalharam no duro, que tiveram a coragem de arriscar e investir, que criam emprego, que sofrem quando se aproxima o dia de pagar aos trabalhadores e aos fornecedores». Não sei se o Rui Pedro Soares, o Jorge Coelho, o Armando Vara, o Valentim Loureiro, a Fátima Felgueiras, o Dias Loureiro, o Ângelo Correia, o Santana, o Pereira Coelho, o próprio Saraiva, o Abel Pinheiro, o sucateiro, o Diogo Vaz Guedes, o Ferreira do Amaral, o Pina Moura, o Júdice das advocacias, o Teixeira Pinto, o Oliveira do BPN, enfim, todo esse rol de goodfellas, são patrões ou não, mas encaixam no perfil como o parafuso na porca. É tudo gente que cria riqueza, diria mesmo gente que gera a riqueza que serve para pagar aos inúteis energúmenos dos juízes, polícias e militares. De resto, estou convencido de que um governo só poderá ser levado a sério quando começar a pensar a sério na privatização da justiça. Entregue-se a justiça a quem gera riqueza, ilibem-se os bons criminosos, os bons vigaristas, os bons aldrabões em prol da saúde económica da nação. Por mim, estou preparado para aguentar todos os esforços. Se for preciso, torturem-me. O que eu quero, o que eu desejo, aquilo porque anseio é apenas uma só coisa: a estabilidade dos mercados, a pacificação da especulação financeira, a boa saúde da economia. Que se esfolem, torturem, matem, que se escravizem, que trabalhe até ao último pingo de suor essa canalha, esse gado a que alguns, por clara ingenuidade, insistem em classificar de povo. Essa gente mais não é do que o vírus da nação enquanto a frugalidade não os tornar na aspirina dos mercados. Já eu, no meu palanque de classe média, estou disposto a não desperdiçar nem mais uma espinha quando for comer a restaurantes, ainda que já muito raramente o faça. O bom Saraiva diz tudo quando revela a tragédia dos números: «numa empresa como o SOL, por cada empregado que leva para casa 1.390 euros, a empresa tem de desembolsar 2.300». A pergunta é simples: sendo assim, como sobrevive o Sol? Eis a resposta: tem ao volante um Saraiva que ao beber café não desperdiça o açúcar branco, o açúcar escuro, o adoçante e o pau de canela. Mistura tudo numa perfeita simbiose de cafeína, emborca a mistela e arrota para o ar a prosa da semana. Só gostávamos de saber onde vai o bom homem beber café? E não necessariamente para aí desperdiçarmos parte dos nossos 485€ de base, mas para sacar do lixo, mais que não fosse, o pauzito de canela. Mas eu vou mais longe, não me limito a substituir a água Vittel pela do Luso. Recorro directamente a boa água del Cano. Entre Heineken e Sagres, há sempre uma Cergal a sorrir para mim. Quanto a vinhos, o Chandon do Cartaxo é a mais justa das opções. Em nome da crise e das suas facturas. Tabaquinho, só de enrolar. Ou barba de milho. Fatos não visto, mas já substituí toda a indumentária. Limito-me à farda fornecida pelo bom patrão. Aos domingos, lá ponho uma camisita comprada nos ciganos e a boa ganga do mercado de Santana. Tenho um par de sapatos para o ano inteiro. Compro-os sempre no Inverno. Chegados ao verão, têm buracos. Mas não importa, faz de conta que é ar condicionado. Os pés respiram melhor. Há muito que optei por férias cá dentro. Tão dentro, tão dentro, tão dentro, que raramente saio de casa. Os aeroportos são, sem dúvida, um risco desnecessário e um incómodo evitável. Sobretudo para quem lhes pode sentir o cheiro. Nunca tive, nem sei o que é, um Mercedes E, um Mercedes C, Audi 6 ou um Audi 4, mas desde 1999 que tenho o mesmo e bom velho Ibiza. Não me incomodam os seus soluços nem a falta de ar condicionado. É para isso que servem os vidros e, em nome da crise, não há cá calores que justifiquem luxos. Aos hotéis, prefiro a tenda de campismo. Enfim, sigo, na linha do bom Saraiva, os meus próprios princípios de frugalidade. Diga-se também que só uma vez na vida comprei o Sol. Seria um desperdício inconcebível gastar dinheiro com as merdas que o Saraiva escreve.

aqui
http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.com/2011/07/classe-media.html

1 comentário:

  1. até um patrão gordo e ignóbil eu aguento. Que remédio! ...isto nã é um estereótipo do patronato

    e uma ofensa à classe trabalhadora

    que anda bastante anafadita nestes dias
    e nem todos vão aos ginásios com a subida do IVA
    há mais sindicalistas e menos pessoal dos call center's

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