14 de junho de 2011

Quem tem medo de eventos de crédito? – Crónicas de uma regulação financeira desnorteada

Parece que afinal eles existem mesmo e não eram só um vago espaço abstracto, deixado em aberto para manobras de pilotagem de ataques especulativos, da autoria de uma regulação financeira que durante anos manteve a teoria abstrusa de que haveria menos incumprimento (e mais confiança no mercado, imagine-se) se os “seguros” contra eventos de crédito (Credit Default Swaps) não significassem necessariamente que as instituições que os vendiam eram obrigadas a ter reservas para os poder pagar, caso fossem accionados.

A propósito de uma eventual reestruturação da dívida grega, o pânico agora é o de que se viva a edição europeia da AIG, que faliu nos EUA por causa dos CDS accionados depois da falência da Lehman Brothers. A reestruturação da dívida grega faria, não só com que os detentores destes títulos accionassem os CDS correspondentes, mas também com que os prémios exigidos para “segurar” a dívida pública portuguesa e de outros países periféricos disparariam vertiginosamente, arrastando consigo os juros exigidos para detenção desses títulos.

O que é que torna tão poderosa a chantagem do evento de crédito sobre a saída da reestruturação para defesa das economias?

Antes de mais, há que dizer que os Credit Default Swaps, que normalmente são apresentados como seguros contra o incumprimento (default) e outros eventos de crédito (como reestruturação, moratória, etc.), não são seguros nenhuns, mas os produtos de mentes prodigiosas que durante anos se dedicaram a responder, com a cenoura de prémios chorudos à frente dos olhos, à seguinte pergunta: «como podemos lucrar com prémios de seguros vendidos sem incorrermos na obrigatoriedade de deter os níveis mínimos de capitalização exigidos pela regulação aplicável aos seguros?»

Claro que para qualquer um de nós que fosse segurar o carro ou a casa seria uma idiotice optar por uma instituição que afinal nem nos estava bem a vender um seguro – porque na verdade nem era obrigada a apresentar garantias de que se batêssemos com o carro ou tivéssemos um incêndio em casa tinha liquidez para nos pagar –, mas uma «troca», que é o que swap quer dizer.

Então porque é que para os investidores em títulos de dívida pública isto até era um bom negócio? Qual era a contrapartida dessa «troca» que tornava os CDS tão populares?

Voltando ao exemplo do nosso carro e da nossa casa, o que a instituição financeira nos vendia, com o CDS, na prática, era o direito a dizermos aos outros que o nosso carro e a nossa casa estavam segurados por ela. Como esta instituição financeira até tinha um rating que a deixava acima de qualquer suspeita, então a idoneidade dessa cobertura também estaria acima de qualquer suspeita, que é como quem diz, acima de qualquer requisito regulamentar de corresponder a capacidade real de me ressarcir em caso de necessidade.

Neste exemplo o absurdo do esquema resulta óbvio, mas para os investidores em títulos de dívida, que são na sua maioria bancos, sujeitos a requisitos de capital mínimo em função do crédito que concedem (aka títulos de divida que detêm), comprar CDS correspondia a uma operação de cosmética dos seus balanços bastante compensatória, que de resto dava resposta à mesma pergunta que tinha motivado as mentes parteiras dos CDS: «como podemos lucrar com os juros do crédito concedido – e continuar a concedê-lo – fugindo à exigência reguladora de acompanhar este aumento de risco com um aumento de capitalização?» Com o CDS, o título de dívida subjacente ficava com o carimbo do rating da instituição financeira que o vendera, deixando de constar como risco no balanço dos bancos que podiam assim continuar a comprar títulos de dívida.

Chegamos ao desenlace desta história de amor do capitalismo: fruto de uma regulação financeira paradoxalmente orientada para a evasão à regulação, aquela que era a relação perfeita entre o interesse dos bancos e o interesse das instituições vendedoras de derivados como os CDS resulta numa divergência inconciliável: o interesse dos credores na reestruturação das dívidas soberanas dos países periféricos – que é para ver se apesar de tudo recebem tanto quanto possível – e o interesse dos vendedores de CDS em não falirem por estes serem accionados por motivos de “evento de crédito”.

(Claro que a assistir a este drama queenismo do capitalismo financeiro está um BCE, absolutamente inutilizado pelos seus estatutos, em que por um lado não pode financiar directamente os Estados libertando-os da chantagem do mercado, e por outro, vê a sua solvabilidade ameaçada pela quantidade de títulos de dívida soberana que comprou ao bancos no mercado secundário)

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